Fascínio pelo totalitarismo, último resquício da Guerra Fria, aura de
mistério, temor de uma nova guerra: especialistas tentam explicar por
que esse pequeno e isolado país asiático atrai tanta atenção."Jogo da
morte" foi a chamada de capa da revista alemã Der Spiegel nesta semana.
Logo embaixo: "Donald Trump e Kim Jong-un arriscam começar uma guerra
nuclear". Completa a capa um desenho estilizado dos dois líderes, de
fraldas, sentados sobre uma bomba.
O objetivo, claro, é chamar a atenção e despertar a curiosidade do
potencial leitor da revista. E a publicação de Hamburgo não está sozinha
na sua estratégia: não se passa um dia sem notícias sobre a Coreia do
Norte nos jornais e revistas da Alemanha.
Mas nem seria necessário estimular o interesse do leitor alemão pelo
país asiático. Assim como em outros países – inclusive o Brasil – o
interesse pela Coreia do Norte já é enorme na Alemanha.
E o país asiático produz notícias com regularidade, não só com seus
testes nucleares e outras provocações militares, mas também com os mais
diversos assuntos. Praticamente tudo que acontece nesse país isolado
interessa ao público internacional. Isso inclui até fatos que jamais
seriam notícia se acontecessem em algum outro lugar, como a abertura de
um parque de diversões ou de um clube de hipismo.
Mas há também notícias que chocam. Dois exemplos: em fevereiro de 2017, o
meio-irmão de Kim, Kim Jong-nam, foi assassinado com um gás tóxico no
aeroporto de Kuala Lampur, na Malásia. As suspeitas recaem sobre o
regime norte-coreano, que nega qualquer envolvimento. Em dezembro de
2013, o ditador Kim mantou executar o próprio tio e antigo mentor, Jang
Song-thaek, acusando-o de agir contra a pátria.
Fascínio pelo totalitarismo
Em ambas as histórias, as circunstâncias não estão bem esclarecidas –
uma característica comum a muitos relatos envolvendo a Coreia do Norte e
justamente o que os torna tão interessantes. Pois, onde não há
informações, abre-se espaço para as especulações. O especialista em
comunicação e literatura Eckhard Pabst diz que isso cria um elemento de
fascínio. "Sistema totalitários exercem uma certa fascinação porque
neles tudo é explicado pelas mesmas ideias e tudo é motivado por essas
mesmas ideias."
No caso da Alemanha, Pabst diz que há um fator adicional para explicar o
interesse pela Coreia do Norte. "Também temos um passado ditatorial,
com o qual ainda estamos lidando. E uma forma de fazer isso é olhar para
outras ditaduras."
O professor de comunicação Stephan Weichert, da Escola de Mídia de
Hamburgo, vê ainda outro paralelo. "A Alemanha também foi um país
dividido, como a Coreia ainda é. E a Alemanha Oriental tinha boas
relações com a Coreia do Norte." Principalmente pessoas mais velhas do
Leste da Alemanha ainda sentem certa proximidade com o país asiático,
afirma.
E há, ainda, a fascinação exercida pela própria família Kim – bem como a
encenação midiática do atual líder. Ao contrário de seu pai, Kim
Jong-il, de quem há poucos registros em vídeo e que não costumava se
exibir em público, Kim usa a mídia e as aparições públicas para polir a
sua imagem. "Kim Jong-un se apresenta como um astro do Youtube e se
deixa festejar pelas massas", constata Weichert.
Negativo absoluto
A isso se soma um elemento externo: desde o início do ano, o presidente
dos Estados Unidos se chama Donald Trump, e este, ao contrário de seu
antecessor, pratica uma política mais agressiva e ainda não muito bem
definida em relação à Coreia do Norte. Esse fator de imprevisibilidade e
insegurança e o temor de que a situação se acirre elevam ainda mais o
interesse internacional pela Coreia do Norte, avalia Weichert.
Pabst acrescenta mais um motivo para o amplo interesse pelo regime dos
Kim. "Minhas tese é que a Coreia do Norte funciona como uma espécie de
polo oposto, como um negativo absoluto para muitos de nossos ideais,
para muitos padrões de comportamento que consideramos corretos. Nela
vemos tudo isso ao contrário", diz. Segundo ele, isso dá ao observador
externo a sensação de que faz melhor.
Jornalismo sob controle
Para os jornalistas, um problema central na cobertura midiática sobre a
Coreia do Norte é que grande parte do que se escreve sobre o país é
produzido em redações na Coreia do Sul, na China, no Japão, nos Estados
Unidos ou na Europa – e não no próprio país. Isso acontece porque a
entrada de jornalistas estrangeiros na Coreia do Norte é fortemente
controlada, cada passo precisa ser aprovado pelas autoridades. E quando
um repórter consegue um visto e tem a chance de buscar informações in
loco, ele nunca está sozinho, mas é sempre acompanhado por autoridades
norte-coreanas.
Grupos de jornalistas são permitidos apenas em grandes eventos, por
exemplo, nas comemorações do 105° aniversário do fundador do Estado, Kim
Il-sung, em meados deste mês, quando 120 representantes da imprensa
internacional foram convidados. Em outras situações é difícil haver
jornalistas estrangeiros no país. Apenas duas agências de notícias
ocidentais têm escritórios em Pyongyang. A primeira a chegar foi a
americana AP, em 2012. Em 2016 foi a vez da francesa AFP, ainda que,
neste caso, apenas para geração de imagens.
Na época, o chefe do setor Ásia-Pacífico da agência francesa, Philippe
Massonet, declarou à DW que a decisão era vantajosa tanto do ponto de
vista jornalístico como comercial. Tratava-se de uma oportunidade rara
que não podia ser desperdiçada, argumentou. "É uma grande chance de
reportar a partir de um país no qual poucos jornalistas conseguem entrar
com regularidade. Apesar de todas as regras, acho que há espaço
suficiente para informar jornalisticamente sobre a Coreia do Norte."
Último resquício da Guerra Fria
A ex-correspondente da AP Jean H. Lee faz uma avaliação positiva do seu
trabalho. Ela abriu e dirigiu por muitos anos o escritório da AP em
Pyongyang e vive hoje em Seul, onde trabalha para o centro de estudos
Wilson Center. Lee conta que travava uma luta constante para conseguir
escrever sobre um tema. "Noventa por cento do tempo eu passei tentando
conseguir o direito de escolher eu mesma as minhas histórias."
Ela avalia que foi bem-sucedida nos seus esforços, principalmente se for
considerado que se trata de um país onde estrangeiros não podem nem
passear sem autorização. "Foram resultados duramente alcançados. Cada
história era um desafio, e as negociações para uma autorização se
estendiam por meses", relembra. Era muito comum, relata, ouvir "você é a
primeira jornalista americana que vem aqui" quando ela visitava uma
escola, fábrica ou propriedade rural.
Lee afirma que a Coreia do Norte é um dos países mais difíceis para os
correspondentes internacionais por causa da dificuldade de se entrar lá e
também por causa da dificuldade de verificar a veracidade das
informações. "Essa combinação problemática acaba se refletindo na
cobertura jornalística", avalia. "Se você escreve sobre a Coreia do
Norte a partir do exterior, pode contar apenas com a cobertura da mídia
estatal, que obviamente é propaganda. É necessário um certo tempo para
aprender a interpretar essa propaganda e conseguir extrair dela as
informações. Para um leitor não acostumado, a retórica norte-coreana soa
amedrontadora – e muitos veículos de imprensa caem nessa e informam
dessa mesma maneira. Porém, a cobertura internacional está
constantemente melhorando."
Lee também tem uma explicação para o interesse internacional pela Coreia
do Norte. "Continua sendo um país misterioso e, além disso, o último
resquício da Guerra Fria. Por isso as pessoas ficam tão fascinadas. E os
norte-coreanos sabem disso e jogam com essa imagem." Também os
jornalistas se sentem atraídos por essa aura de mistério, principalmente
em tempos de crise. Já em fevereiro de 2005, a Spiegel colocou a Coreia
da Norte na sua capa, com a chamada "O louco da bomba". Não era uma
referência a Kim Jong-un, mas ao pai dele. O resto da matéria continua
atual.
Autor: Esther Felden (as)
Fonte O POVO